sexta-feira, junho 26, 2009
Saio de casa e passo pelo café perto da estação. Entre o sabor forte do café e o doce do pastel de nata vou aguardando a chegada do comboio. Aproxima-se a hora e como há muito deixei de questionar a pontualidade da CP apresso o passo para a estação, com o pensamento atropelado pelo bulício das decisões a tomar. Entro no comboio e sento-me com um livro aberto nas mãos. Para trás ficam o café, a rua e os passantes. Fica a casa vazia com a porta fechada. E a cama lambida por um feixe de luz que, como eu, procura o teu corpo e não o encontra.
(fotografia por Lina Scheynius)
terça-feira, junho 23, 2009
Do som metálico que se propaga na carne
O teu corpo e o meu. O ardor desta noite misturado com o calor da praia que nos consome a carne. E os teus beijos que me rasgam a boca. Lá fora estouram foguetes e a multidão contorce-se e agita-se numa loucura de feira. Cá dentro dois corpos. A nudez e a descoberta. O trepidar dos tambores e o som metálico de cornetas e trompetes. O primeiro compasso, o canto desafinado e por fim a marcha. O som de um batalhão a descer a rua. E o nosso compasso. O movimento da carne pungente. A inconsciência e a oblação dos corpos. E a música que entra pela janela com um cheiro a Tejo e perdição.
(fotografia por Luís Rodrigues)
terça-feira, junho 16, 2009
segunda-feira, junho 15, 2009
Terminal
Sentei-me na esplanada e olhei para a agenda. Mais um par de dias até ao teu regresso. E lembrei-me. Quando te beijo e tu me beijas e a paixão é uma fera que nos devorou a carne e esmaga agora os ossos que estalam sob a fúria dos seus dentes. Quando me empurras e te empurro e o teu corpo cai exausto. Quando este rio são os teus olhos que eu lambo e beijo e consumo sem nunca conseguir matar a sede. Um gole mais e de novo a agenda. Troco este rio pelo aeroporto de bom grado.
(fotografia por Luís Rodrigues)
sexta-feira, junho 12, 2009
Sei que se não tiver coragem
"Se o meu amor vier cedinho eu beijo as pedras do chão que ele pisar no caminho." Escuto a voz dela, entre guitarras e um inesperado saxofone, numa versão desconhecida. O horizonte revela-me a plenitude da ausência. Indiferente. Não beijo pedras nenhumas nem espero. Apenas sou. Atravesso a areia e o corpo arrepia-se de sal. Esta é a hora em que Antero, uma vez mais, empunha o revólver e termina a sua existência num banco de jardim em Ponta Delgada. É a hora em que Florbela, desgrenhada, acaricia o último barbitúrico no palato, e em que Lorca é fuzilado de costas contra um muro. A hora derradeira. E o universo suspende-se nos breves segundos que me dás para decidir.
(Fotografia: Christos Stavrou)
terça-feira, junho 09, 2009
Rasgando um sorriso destilado na palavra escrita (Perdida na Noite)
Nas tardes em que descemos até à cave e mergulhamos no ventre pétreo onde o frio nos sussurra o fermentar do vinho. Naquelas em que corremos como loucos até nos perdermos planície adentro. Papoilas rubras que crepitam de desejo sob o sol tórrido que nos banha o corpo enquanto nos amamos. Quando mergulho e não sei que ânsia me puxa ao de cima: se respirar, se ver-te na areia a olhar para mim. Quando depositas a oblação dos teus beijos no altar do meu corpo. Quando me olhas e eu te olho e Deus grita a sua existência num mundo que fervilha e explode de vida à nossa volta. Nessas tardes sou mais eu. Porque mais teu.
(imagem: "Red field", por Richard Herman)
quarta-feira, junho 03, 2009
O tempo dos mitos
O Homem foi dotado das capacidades de sentir e de comunicar. No entanto, nem sempre o que comunica corresponde ao que sente e nem sempre o que sente permanece imutável. Sentir e comunicar são faculdades sublimes com que a nossa existência foi brindada. E ainda assim, tão fatais. A discrepância entre o que se sente e o que se diz magoa. A descoberta de que o sentimento do outro mudou fere. Por outro lado, fomos também dotados de uma força inesgotável para fazer frente às derrotas e armistícios que desgastam a pele da confiança.
Assim falou o ancião.
A força do jovem era, porém, empregue em requerimentos, recursos e contestações. Nada lhe sobrava para lidar com o desalento humano. E assim, quando novas promessas despertavam a primavera do seu corpo ele cubria-as com a sua toga negra, feita de linhas azeviche roubadas à própria noite em tempos idos. Quando ainda acreditava.
(Pintura: "Noite estrelada sobre o Rhône", por Vincent Van Gogh)