domingo, dezembro 28, 2008
Se tu soubesses o eco da noite negra que se derrama para lá da janela. O vazio do fumo de mais um cigarro. Os telefonemas onde escuto as vozes de corpos passados ou o vazio das folhas brancas. Luzes dos carros que cruzam a noite e o vazio de mim em mim. Mas não sabes. O som da guitarra que me arranha a carne e o sabor da saliva que secou entretanto. A distância da luz saudosa que não conheci ao abismo de mim. Tão negro como esta noite. Virias?
(imagem: "american idol", Ed Slack)
sexta-feira, dezembro 26, 2008
O meu corpo de Natal
Os estrondo da chegada dos cavalos fez levantar as gaivotas em revoada. Parámos lá em cima, nas rochas, e apeámos. Descemos até à praia pela encosta. O vento beijou-nos mil promessas, o mar, louco, trespassava o areal ao longo da costa e os nossos pés gritaram os mil grãos de areia que os envolveram. Sentámo-nos a vê-las desfazerem-se na mais nívea espuma. Embalaram-me o olhar e eu acabei por adormecer. Vento, espuma, sal, areia. O mar ofereceu-se em corpo. E nus envolvemo-nos: carne, sal, espuma, sangue, água, lábios. Uma nudez própria de quem nasce. De quem renasce. É isso o Natal?
Perguntou o velho que coleccionava conchas.
(imagem: "Study from the human body", Francis Bacon)
quarta-feira, dezembro 17, 2008
(in)diferente
Se tu soubesses como o céu carregado de medos cinzentos se desfaz contra os vidros da janela do gabinete, escorrendo em gotas de miséria e desespero. Como as folhas se multiplicam nas pastas e o volume de cada processo parece rebentar de apensos. As letras de cada palavra atropelam-se sem sentido e correm confusas fugindo ao meu olhar e a estas mãos que as tentam agarrar num último impulso. Os almoços são insípidos e os talheres tocam nos pratos dobrando a finados. O cabelo e o sobretudo fundem-se numa poça negra ensopada por tantas chuvas, o passeio estende-se sem fim, os ombros dos outros empurram-me indiferentes. Os teus beijos são beliscões neste cadáver. Cai a noite. Abraça-me, disse o rapaz-homem-velho.
(fotografia: "O medo", por Rui Vale de Sousa)
sábado, dezembro 13, 2008
Dissipa
A ferrugem dos gonzos da porta vence-se com um pontapé e as ervas que rasgam o soalho são calcadas violentamente. Abro as portadas de par em par e a luz queima a escuridão dos medos. Dissipa. Eles não querem mas eu vou. Eles não querem mas eu faço. Chegou a hora dos homens e a coragem é o único estandarte que ousa erguer-se no campo de batalha e eu não tenho medo e eu vôo. As ondas rasgam a costa e fendem rochas. O seu estrondo mete-lhes medo. Cabrões. Que não querem mas eu vou.