segunda-feira, fevereiro 26, 2007
quarta-feira, fevereiro 21, 2007
Noites com a noite nos braços
As paredes arrefecem-se do sol que as lambeu durante todo o dia. Agora o vale vestiu-se de noite e o terraço enfeitou-se de estrelas. A vela acesa empenha todos os esforços: não quer a casa abraçada pelas trevas. Tu também te esforças para saber. "Porque é que não páras? Porque não te deitas?" Vejo a dúvida nos teus olhos e saio para o alpendre. Tu não percebes e ninguém antes de ti percebeu. Nem eu. Não consigo. Tenho que sair de nós para estar contigo. Caminho descalço sobre as lajes frias. Fecho a cancela e sigo em direcção ao monte. Sinto-me feliz, agora que embalo a noite escura e fria. Agora que a tenho nos meus braços. Ninguém antes de ti percebeu. É que eu não sei esse abraço permanente. Ninguém soube que me queria perder enlouquecido de saudade do que nunca tive e que essa é a saudade mais perigosa. Por isso continuo a caminhar. A casa é agora um pontinho onde a lua se derrama lá no fundo do vale. A erva transpira a chuva que não caiu e caminho sentindo o seu roçar nas minhas pernas. Diz-me que a ventania se aproxima prenha de carícias. Conta-me histórias de felicidade e pede-me que me deite sobre ela. A casa já não se vê e por isso deixou de existir. O universo é o homem e a erva que pisa. Ambos com saudades do que não houve. E envoltos um no outro adormecem. Silêncio. Sobre o homem e a erva onde agora se deita.
(fotografia de Filipa Scarpa)
sexta-feira, fevereiro 16, 2007
Ad lucem
quarta-feira, fevereiro 14, 2007
segunda-feira, fevereiro 12, 2007
Manhãs kafkianas
A minha pele está a mudar de tonalidade. A côr dos olhos, do cabelo. Todas as manhãs o espelho confirma esta metamorfose. Os traços começam a adquirir uma fisionomia que me é familiar mas que nunca foi a minha. É cada vez mais notório e assusta-me. As batidas cardíacas perderam o seu ritmo próprio e os pés já não me levam para onde desejo. Já não desejo. Os meus horários já não são os mesmos e os caminhos que percorro são-me estranhos. Quando me deito o cheiro da cama não é o meu. O odor do meu corpo nunca foi este. Sou cada vez menos eu. Há cada vez mais algo de ti. No que fui eu.
(fotografia de Júlio Viena)
segunda-feira, fevereiro 05, 2007
Flamenco (considerações a propósito do espectáculo "España Baila Flamenco")
O grito continuado. Eco das planícies andaluzes. E ela dança. Faz seu esse grito. Rodopiam os folhos vermelhos, gira o corpo numa reviravolta estonteante. Os braços prendem o olhar em ondulações constantes, harmoniosas. Um outro grito. Acentuado. E os braços que param. Tira-nos o fôlego. De novo gira sobre si mesma, envolta em folhos e asas de leques. Rosa vermelha que emerge do cabelo negro. Lábios rubros como o sangue que lhe ferve nas veias. Explode num estampido de pateares no soalho de madeira que se mistura com o compasso das castanholas. Bambolea as ancas caminhando pelo nada de que é Senhora. Prisioneiros dos seus folhos, dos seus braços, o nosso o olhar não se desvia. Traças apaixonadas pela luz rubra da sua alma. Pela transparência de uma lágrima que lhe foge. Quando por fim já não dança.
(Pintura: "Flamenco dancer" por Fabian Perez)