
"Além Tejo, os beirais são azuis. Sob a luz tórrida, entardecem ao canto da rua, esperando os pardais, que, ao crepúsculo, sublimam o amor." (Ana Prado)
Fui uma sombra do que sou. As noites pingavam minutos que custavam a passar e os dias eram cobertos por um véu de desilusão que me esmagava sob o seu peso. Vieram os livros e veio o verbo. A aventura da palavra. E depois veio o verbo através dum monitor que me abria janelas sobre sonhos, desejos e recordações. Um dia abriu-me uma janela que me trazia ecos daqueles dias em que tinha sido tão feliz. Encantei-me. Todos os dias abria essa janela e os olhos brilhavam com as imagens. A pele sentia as palavras que ela tão bem alinhava e que me empurravam para fora da fortaleza amarga que tinha construído aqui dentro. Naquele sítio onde guardamos as pessoas especiais e as feridas que essas pessoas por vezes nos fazem. Apenas porque são especiais. Tornou-se uma ansiedade diária o acto de carregar no botão que me abria as janelas ao sonho. Eram janelas para aquele sul que me tinha enchido o ser com tudo o que há de bonito neste mundo e em todos os outros. Houve um empurrão mais forte e avancei. Construí uma caixa que fui enchendo com milhões de pequenas pressões nas inúmeras teclas que permanecem deitadas sob as minhas mãos. Fiz as pazes com o Sul. Fiz as pazes com a vida. Há um ano atrás.
(fotografia: Ana Prado)
PS: O "murmúrio das ondas" não existiria se não tivesse existido uma "luz fugaz". A autora, a apaixonante Ana Prado, que nunca vi nem cheguei a conhecer e a quem todas as homenagens que possa fazer serão sempre poucas ensinou-me muito. Com ela aprendi a lavar os arranhões da vida com a pureza das palavras. Não deixa de ser engraçado que a metamorfose que me trouxe a felicidade de volta tenha iniciado com um pequeno toque numa tecla. Há um ano atrás.