Das deambulações crepusculares (num terraço em Alcântara)
O apito dos barcos consegue ser tão doce. Se eu fechar os olhos consigo que seja esse o único som que o vento me traz. Vejo-os sair cá de Lisboa com destino à outra banda. Seguem grandes e ruidosos chocalhando na água para se fazerem pequeninos lá a meio do rio. O sol vai-se despedindo deles tornando o laranja da sua tinta ainda mais vivo quando beijado pelos últimos feixes do crepúsculo. Gostava de seguir num cacilheiro. Ir para as bandas do sul em busca de nova vida, queimar-me neste sol que teima em desaparecer. Podia saltar desta varanda, pular por cima da linha do comboio e apanhar um barquinho no cais. E ele levar-me-ia. Talvez fosse ter a uma aldeia semi-abandonada onde eu me pudesse estender num terraço a escutar o ranger das rodas de uma carroça perdida. Gostava de seguir num cacilheiro. Mas tu não. O som das conversas pretensiosas e das risadas encenadas chega-me aos ouvidos. És tu que abres a porta para o terraço. Provavelmente as mãos dos convivas já estão gastas de tantos cumprimentos e apresentações ou então foram as suas línguas que se dissolveram nos martinis. Aproximas-te de mim e eu lamento-me. Gostava de seguir num cacilheiro. Não comeces com os teus devaneios, dizes-me tu. Toda a gente me pergunta por ti e já perdeste a oportunidade de ser apresentado ao embaixador. Enceno um ar de sofrimento e puxo-te pelo braço. Anda, vamos sair discretamente. Vamo-nos perder de rir numa taberna qualquer aqui em Alcântara. Ou então fugimos num cacilheiro. Não sei já te disse, mas eu gostava tanto. Louco, dizes-me tu. Não percebes que vão começar a tocar o hino e a seguir é a cerimónia da tomada de posse? Deixo o meu martini esquecido na varanda. Talvez ele tenha mais coragem que eu e fuja num cacilheiro. Caminhamos até à porta e vejo como estás bonita. Gosto de te ver assim, com ar de executiva decidida. E é assim que te vão ver quando te levantares para seres empossada. Vão ver como és determinada e bonita. E como eu te aplaudo orgulhoso. Em vez de fugir num cacilheiro rumo ao sul.
(imagem: Madalena Fonseca)
12 murmúrios:
Ás vezes também tenho vontade de uma fugas...de ir para o incerto, para o desconhecido mas depois volto á realidade e aproveito-a...afinal a vida é mesmo o presente a acontecer.
Beijinho e boa semana
Tão pertinho que estamos dum cais... mesmo que só de... "sodré".
Abraço.
ler-te é uma delicia...
aproveita de coração aberto todos os momentos...
... e as fugas também !
bj
Quem não lhe apetece partir num qualquer "cacilheiro"?
Revejo-me no texto em vários momentos da minha vida...
Abraço
A vida é uma eterna cedência....
Só quando vivemos apenas connosco podemos rumar a sul, num cacilheiro. Mas viver sem a metade de nós é tão difícil...
A tua escrita encanta-me, e tu sabes...
Beijinhos, Luís
Não sei porquê, veio-me à lembrança a música de uma velha revista no já morto Teatro Monumental, "Esta Lisboa que eu amo". E a música era cantada pelo José Viana e era o "Zé Cacilheiro": "sou marinheiro, deste velho cacilheiro........."
Deambulações, sonhos...à beira da viagem, mas quase sempre ficam à beira.
É tão bom ler-te!
Beijinho*
Podes fugir num cacilheiro. Serás sempre bem vindo a esta margem. Ou podes apenas passear-te por aqui sem fuga alguma.
Descobri o teu espaço, ocasionalmente, há alguns meses atrás. Bebi-o com a avidez de uma sede desértica. Encantei-me, deslumbrei-me a cada passo. Memorizei-o de imediato... no sítio errado, e perdi-me dele. Desde então que o procuro incansavelmente, nesta blogosfera labirintica. Hoje, por fim, o dia é feliz.
Obrigada pelo despertar diversificado e profundo de sensações.
e porque não partimos!?
temos medo de que?
parabéns adorei o texto
abraço vagabundo
Quem um dia não sentiu necessidade de fugir...
Também me fez lembrar a música do "Zé Cacilheiro".
Sinto inclusivé o cheiro do rio...a humidade, o sabor do vento.
Adorei!
Beijo grande
Excelente conto, Luís. Talvez menos intimista que outros textos teus, mas mais "aberto" para o lado ficcional, para a imaginação do leitor. Gostei muito.
Um beijo terno.
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