Bilhete
A carta está escrita e concluída, encerrada dentro da gaveta. Os motores do avião já começaram a trabalhar e acabaste de apertar o cinto, enquanto seguias com o olhar a hospedeira que atravessava o corredor com passo acelerado. O copo está a meio, reluzindo debaixo do candeeiro do balcão. A cabeça dói-me, confusa, e os olhos ardem-me de incertezas. A carta permanece dobrada em três. Dentro da gaveta. São 19h00. O teu avião despede-se de Lisboa e eu sei neste preciso momento que sou imortal e que a vida é para sempre e que para sempre o teu avião há-de partir de Lisboa. O miúdo brinca à beira do passeio e eu passo sem me deter. Empurro-o com um pontapé, atravesso-o ou desvio-me. Ignoro-o. Ignora-me. Não há miúdo nem há Lisboa. Nem aviões, nem cartas nem gavetas nem substantivos estéreis que me secam os lábios. Rasgo-os a todos e sigo imaterial. Rasgo-me a mim. O mundo resume-se a um aeroporto vazio.
(imagem: "Flying High", Joyce Brown)