quia amo
São oito da noite e tu não chegas. Continuo sentado à beira-rio enquanto lá em cima, na vila, a cal se despede do sol que só voltará amanhã. O ar tépido beija-me a pele e o silêncio veste-se das pequenas intermitências de uma rã que salta para o rio ou de dois patos que recolhem à margem. São anos de cartas que trago na mão embrulhadas por um cordel velho. Eu, que quis gritar a liberdade, prendo agora a minha vida com um cordel... Uma das cegonhas desce do cimo da torre e paira sobre o rio, voando rente à água e cruzando-me a vista por duas vezes. A tarde cheira a feno e a águas mansas. Tu não chegas e eu começo a temer que não me dês a oportunidade de te oferecer a minha vida assim, amarrada com um cordel. É feita de papéis amarelecidos mas escritos com tanto amor. O Guadiana sopra baixinho murmúrios de amores passados e a tarde abraça-me com ternura. Não sei se vens. Também não sei se te devo entregar estas cartas. A quem interessam as epístolas de um advogado de 26 anos? Levanto-me e deixo que o sol se recolha no Guadiana em privacidade. O meu corpo é demasiado profano para aqui continuar presente. Se chegares já não me encontrarás. E se não me encontrares é porque já chegaste tarde. As cartas ficam. Não esperam por ti sentadas à beira-rio. Antes se dissolvem nas águas mansas entre farrapos do crepúsculo.
(Fotografia: Luís Rodrigues)
9 murmúrios:
Muito bonito, Luís. Lia-te e adivinhava-te no Alentejo... a cal, as cegonhas....
Provavelmente é melhor que as cartas se dissolvam, mesmo...
Um beijo
Nada melhor que um rio para dissolver esse tipo de cartas, devagar, como se pretende que se dissolva a imagem da pessoa em causa.
Abraço.
"O esquecimento é mais sublime que o perdão." (de Thomas Carlyle)
Linda, essa tua foto de um entardecer em Mértola (é Mértola, certo?)...
O cenário perfeito para a candura das tuas palavras.
Quando partimos o cordel e já não conseguimos manter as nossas cartas juntas,,,, começamos a sentir a sensação de que estamos perdidos,,, lentamente,,
Meu querido amigo, como calcularás visito a tua casa desde há muito. Continuei a fazê-lo ao longo deste afastamento. Quando tornei, passei por cá a dizer-to, no entanto, não terás reparado e eu achei por bem manter o silêncio, lendo-te apenas. Fiquei muito contente por me teres achado, logo quando não estava perdida:)
Em Mértola (é Mértola, certo??)ouve-se, suspenso e difuso, o suspiro de tempos antigos. É ali o sítio ideal para nos despojarmos do passado, porque ficará guardado na paisagem, libertando-nos. Fiz isso há relativamente pouco tempo. Curiosamente também com cartas amarelecidas.
Um grande abraço, meu amigo. Avistar-nos-emos sempre algures, como se em nós habitasse uma voz irmã que nos impele ao encontro.
O teu texto foi parar ao Cleopatramoon.
BJ
Saudades de quando acordava, e era essa a paisagem que sempre via...
Excelente momento...
bj
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