Fotos do passado II
Não consigo esquecer. Uma história digna daqueles fimes dos anos 50. A preto e branco. Era a preto e branco que eu trajava naquela noite. A primeira noite de gala do cruzeiro. Cansado dos apertos de mão, dos brindes e das apresentações tinha-me ido refugiar no bar. Estava sentado ao balcão, sem sequer me ter dado ao trabalho de vestir algo mais confortável. Bebia. Muito. Depois de várias vodkas, martinis e manhatan's entregava-me agora a um bloody mary. O fumo do cigarro falava-me das presenças do passado. Ausências do presente. Incertezas do futuro. E tu entraste. Reparei logo em ti. A música deixou de se fazer ouvir. O teu caminhar denunciava uma ligeira embriaguez. Sentaste-te. Dois bancos de distância entre nós. Os olhares cruzaram-se demasiadas vezes. Não era uma coincidência. Levantaste-te e vieste sentar-te a meu lado. Sempre a tropeçar. Rendi-me de imediato. O olhar verde. Meigo. Ingénuo e sincero. Conversámos sobre o teu reino e a minha república. A Europa da carne e da cerveja e a Europa do pão e do vinho. Sobre ti. Sobre mim. Sobre o mar do Norte que atravessávamos em direcção à Noruega. A foi a primeira noite. O deambular pelo convés sob o sol da meia-noite que não se põe na Escandinávia. Os impulsos do vento. O ruído das ondas que se atiram, loucas, contra o navio. E o beijo. Os beijos. A paixão que nascia no meio daquele mar violento sob um céu partilhado pela lua e pelo sol. Seguir-se-iam os passeios pelas ruas ensolaradas de Bergen, a Galeria Nacional de Oslo, a descoberta das cascatas de Geiranger. Os "Fjords". Os icebergs. E seguir-se-ia a chegada. A última noite. O leito de Desdémona nos camarins do teatro. A última vez que te vi representar. O último passeio pelo convés. O último chá às 5h da manhã. Acompanho-te ao piso da tua cabine. O último beijo. Não te quero largar. Não afastes o teu corpo do meu. O teu calor. Afastamo-nos. Os olhos brilham com uma emoção que só a custo consigo conter. "Don't do that", murmuras baixinho. Aproximo-me das escadas. Não evito olhar para trás. Tu também não evitaste. Um último abraço apertado. O apartar. Tem que ser. Avançamos. Eu para o meu futuro. E tu para o teu. Levo na mão o papel que só posso ler no dia seguinte. No dia seguinte quando todos se tiverem a despedir entre abraços e promessas de reencontro vou-me afastar. Entrar num restaurante vazio. Ninguém dará pela minha falta. Sentar-me-ei. Tirarei o papel dobrado das calças. A música ambiente do restaurante vai tocar baixinho. E eu vou ler. Uma lágrima vai arriscar. Descerá suavemente. "Então? O que é que estás aí a fazer?” Vou-me levantar a correr e meter o papel, de novo dobrado, no bolso das calças. Há um avião à espera. Tenho que o apanhar.
(Photo by Luís Rodrigues)
14 murmúrios:
As imagens belas, as palavras entram na minha alma e romperam a minha mais secreta fantasia...
beijo (em silêncio)
E pk todos temos histórias a preto e branco... algumas belas outras nem tanto... posso dizer-te que sim... é bela a tua História assim como a foto que a acompanha... Parabéns Luis, pelo seu trabalho.
São assim as histórias de amor, aquelas que se perdem e se conquistam, cheias do sentido e dos espaços passados, presentes, que a memória usa para deles não se separar.... são assim :)
Bonito este teu escrever! Um abraço, Luis *
Muito bom!!! A vida é feita destas pequenas mas belas histórias!;)
Abração! e obrigado pela visita.
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Olá Luís.
É verdade. Todos nós temos histórias para contar.
Mas acontece que uns só as sentem e outros, como tu, também as sabem contar.
Quer esta, quer a anterior, são maravilhosas e chocantes. Acontecem uma ou duas vezes na vida e marcam uma vida inteira.
Histórias muito bonitas e enternecedoras. As tuas palavras conseguem rebuscar o que muitos pensavam estar esquecido.
As imagens são espectaculares.
Tem um óptimo Domingo.
Olá Luis,
Se muitas vezes se não sabe bem o que se quer...é bom saber-se, pelo menos, o que se não quer!...
Mas, na maioria das vezes, quando se sabe que se não quer uma coisa, parece querer dizer que tudo o que virá é o que se quer...e, no tudo, também hà muito do que se não quer!
A vida acontece, é pois preciso deixá-la acontecer!
Parabéns por estes dois magníficos textos!
Um abraço.
A tua história de amor fez-me lembrar um filme que num determinado momento da minha vida me tocou: "Love Affair" com Annete Bening e Warren Beatty, de 1994.
Recordar o passado torna-se numa ambivalência sensorial: por um lado é uma actividade que dá prazer, por outro causa sofrimento. Prazer pelos momentos bem passados, pelos momentos que uma vez se desejaram ser intermináveis. Como seria bom voltar o relogio para atrás e pará-lo naqueles instantes...
A dor, por sua vez, é causada pelas (in)decisões tomadas e assumidas...será que foram mesmo assumidas?!? Ou simplesmente não terá havido coragem para desenhar um futuro num papel de contornos incertos...só Deus sabe...
Bem Haja pelo filme partilhado.
PS -...e não tem que ser a preto e branco...
Um abraço.
Uma história bonita, esta que contas. De tão bem escrita que está que, à cada palavra, as imagens sucedem-se...
Bom fim-de-semana.
Abraço
Só um texto que segura nos suporta... assim... compacto... neste mundo de pressas.
Também a tua escrita é envolvente.
Obrigado!
daniel sant'iago
Olá Luiz! Muito bom o seu texto, qualquer um vivente com certeza se verá dentro dele, é como um filme que todos nos vivênciamos e ou pensamos em vivênciar, parabéns!
Obrigado pelas palavras no nosso blogue, volte sempre! Eu, faça fé, sempre voltarei aqui.
abraços,
O Sibarita
Olá luis, resolvi visitar o teu blog.
Gostei muito e este texto muito bonito.
Voltarei.
Beijo daqui das minhas noites de lua cheia.
As ondas trazem, mas também levam...Bonita hitória!
Beijinho
Doceando
uma história, algumas imagens surgiram com ela,
mas
sobretudo sobressaíu a harmonia, o momento, a alegria, o prazer e também a tristeza
são estes pequenos items que dão vida à história e a tudo o que ela rodeia
e ela só existe porque ela é a vida e a vida é assim
:)
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