seco
Dizias que quando te tocasse o cabelo haveria de sentir a espuma de cem ondas. Que nos corpos crepitariam sempre as chamas de todas as fogueiras que se acendem em Outubro para as queimadas. Que as noites seriam eternas e prenhes de estrelas e que os teus beijos seriam pêssegos maduros que colheria com a boca ao entardecer. Que o teu olhar seria devoto e o teu único medo o de me perder. Recordo-me de cada promessa enquanto te sinto lá em baixo, na cozinha, distante. Ausente. Quando descer e te acariciar sentirei apenas os teus cabelos. Não existirá a espuma nem as ondas. O eco do seu rebentar é tudo o que agora possuo. Olho pela janela do quarto e vejo o fumo de alguma queimada num quintal distante. Também eu ardo, é certo. Mas tu és eira de pedra húmida, sem lenha ou feno ou desejo de me abrasar o corpo. Não há estrelas, nem noites. Apenas manhãs rasgadas de nevoeiro. Os teus beijos são gotejar rotineiro cujo compasso exorciza devoções. Chamas-me para almoçar e eu estremeço. É a voz com que me prometeste tanto.
(imagem: "American Gothic", Grant Wood)
2 murmúrios:
Sou há muito tempo um leitor atento, mas invisível, da tua escrita. Faço-me vivo nestas palavras para dizer que os teus pequenos textos são de uma sensibilidade tocante - pelo que só posso agradecer que os tornes públicos. Alguns mais elegíacos, outros mais optimistas, mas sempre com uma bruma de (im)possibilidades a pairar. Questiono-me - sem direito a tal, admito -, que parte dessa beleza é ficção e que parte desse sofrimento é real. E quanto desse sofrimento é amortecido quando se torna, ele mesmo, beleza.
Wong Kar Wai faria filmes sublimes a partir das tuas palavras.
Um abraço.
c
Obrigado Anónimo, pelas gentis palavras.
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