O Verão seguinte
Não fui capaz de acompanhar a Mãe e o Pai nestes dias para os Milheiros. Refugiei-me na monografia e na praia. Teria ido... se fosse para te ver. Parece que foi ontem. Acordava cedinho, com o cantar dos galos, e via-te chegar com leite acabado de tirar das cabras. Os meus lábios tocavam o teu rosto cultivado pelos anos e pelas amarguras. Ficava fascinado ao ver como aquele líquido branco se transformava no mais delicioso queijo fresco, acariciado pelas tuas mãos, enquanto lhe juntavas um bocadinho de cardo. Depois passava a carrinha do merceeiro. Eu sabia que teria direito a um pacote de bolachas Maria. Aquelas bolachas que me compravas. A mais divina guloseima. Vinham das tuas mãos ternas. Brincava no terraço enquanto te via a lavar a roupa no tanque ou de volta das flores. Os cravos coloridos contrastavam com o negro que envergavas. Da cabeça aos pés. Hoje já não há cravos. Nem o pequeno carreiro que levava ao poço. A Mãe e o Pai acharam que a tua casa era demasiado velhinha. Mandaram-na abaixo e sobre ela fizeram uma muito maior, moderna. Eles dizem que é mais confortável. Eu preferia a tua. Para mim bastava aquela porta de madeira velhinha atrás da qual eu sabia que te encontrava. Aquela cozinha onde nos sentávamos os dois sozinhos a comer. Onde eu dizia disparates e tu escutavas... Onde irias ser encontrada estendida no chão. O prato caído. O almoço espalhado. A trombose. Havia a sala cheia de luz. E o quarto. O quarto com a cama de ferro onde me deixavas dormir contigo. Onde eu descobri que, por baixo do lenço negro que envergavas, se escondiam cabelos brancos do mais puro linho. Onde rezávamos juntos um Pai-Nosso, uma Avé-Maria e a oração do Anjo da Guarda. Depois eu ficava em silêncio. Julgavas que dormia. Escutava-te a murmurar enquanto rezavas baixinho o terço. E então, sim, adormecia. Acordaria no dia seguinte. Cedinho. Quando estivesses a ordenhar as duas cabras que mantinhas apenas para me fazer o queijo. E assim crescia. Tive que vir para Lisboa. A escola. Sabia que o Verão seguinte seria nosso. E foi. Até ao teu último Verão. O dos meus 9 anos. Com o Outono veio o telefonema. O quarto do Hospital. Também tinha uma cama de ferro. Mas eu não podia dormir contigo. Ouvir-te murmurar o terço. Toquei o teu rosto. A tua pele. Tinhas os dedos negros. As nozes que apanhaste no dia da trombose. Os teus murmúrios soavam agora a gemidos. Alinhei-te os cabelos brancos, enxuguei-te a lágrima que encontrava o seu caminho nas tuas rugas e dei-te um beijo. O último. Sem o saber. Saí do quarto com esperança. O Verão seguinte seria nosso.
5 murmúrios:
Fiquei sem palavras perante este teu texto. Derreti-me. Li-o e reli-o. As lágrimas envolveram os meus olhos. Estas palavras envolveram o meu coração. Uma profundidade simples. Uma escrita que fala do passado, das recordações, dos momentos. Quão especial são as avós. Quão especial as histórias, o conhecimento, a experiência de vida através delas retratadas. Neste texto pegaste em tudo isso e tramspuzeste uma mensagem muito especial, uma homenagem escrita, uma vertigem do coração.
********** (5 estrelinhas é pouco, dou-te 10)
Abraço amigo! :)
É lancinante...~
Há muito não me emocionava com um texto... assim... cruel. Assim saudoso. Assim a soar a perda. Assim...
É um texto muito sentido, muito humano, muito doce. Uma bela homenagem (suponho) à avó, à tua querida avó falecida há alguns anos atrás.
Fizeste-me lembrar da minha (tinha eu 17 anos quando se foi).
Obrig pelo texto e pelo momento que me fizeste sentir de boas recordações.
Thinker: "Quão especiais são as avós". É verdade. Quão especiais são todas as pessoas que nos dão afecto incondicional.
Ana: Muito obrigado. Tens razão. Não se pode separar o vocábulo "perda" do vocábulo "cruel". Assim são as perdas...
Pé de salsa: As avós trazem-nos sempre boas recordações , não é verdade?
são esses momentos, essas pequenos acontecimentos que nos ficam são essas pequenas alegrias e tristezas que mais tarde serão importantes em momentos de decisão
sem eles a vida não tinha gosto e era algo sem sabor
... fizeste-me recuar no tempo e à mesma idade ...
:)
Enviar um comentário
:: INÃCIO :: O Murmúrio das Ondas ::